[20a. MOSTRA TIRADENTES] UM FILME DE CINEMA



UM FILME DE CINEMA
de Thiago B. Mendonça




O segundo longa-metragem de Thiago Mendonça gerou um enorme estranhamento ao ser projetado na tela do Cine Tenda em Tiradentes. É curioso falar isso de um projeto de filme infantil bastante coeso dentro de uma narrativa clássica. Mas o estranhamento veio de dois lados. Primeiro, dado o perfil da filmografia do diretor, com filmes de forte base política ou de olhar para a periferia (social ou mesmo do cinema), como comprova seu primeiro filme "Jovens infelizes", cuja primeira exibição aconteceu justamente um ano antes na mesma Aurora de Tiradentes. O segundo estranhamento veio do gesto da própria curadoria em selecionar um filme com esse perfil para integrar a Mostra Aurora. Completando 10 anos, a Aurora sempre foi estruturada em torno de filmes que propõem uma visão de experimentação de linguagem e de outras possibilidades para o cinema autorais brasileiro. Sem dúvida, UM FILME DE CINEMA é um gesto ousado de seu realizador, por se colocar num lugar movediço, diferente de tudo o que fez antes, ou da face mais "reconhecível" de sua filmografia - afinal, diz a cartilha que os "autores" precisam prolongar, aprofundar os mesmos caminhos - e, assim, a curadoria prolonga a ousadia desse gesto de "deslocamento" proposto pelo diretor. Ao mesmo tempo, esse gesto acaba soando mais como uma provocação do que propriamente uma proposição, visto que me parece que UM FILME DE CINEMA não possui fôlego para, tomando como ponto de partida o "gênero" do filme infantil, propor uma mise en scene que irá oxigenar ou arejar o cinema brasileiro contemporâneo em termos de um olhar para sua linguagem.

Ao mesmo tempo, me parece claro que UM FILME DE CINEMA não é de modo algum algo um "desserviço" ou algo que manche ou comprometa a filmografia de Mendonça. Desde as cartelas iniciais, o projeto já se apresenta: um projeto voltado para o edital de TVS públicas, na linha diretamente voltada para o público infantil. E também é claro que o cinema brasileiro precisa de mais conteúdos para essa faixa de público, que já começa formada pelos formatos norte-americanos, presentes em canais como Discovery Kids, Cartoon, etc. E o desafio de produzir um filme infantil que possua uma marca própria, um olhar autoral, é inegável.

UM FILME DE CINEMA narra as aventuras de uma criança de classe média que se vê em desventuras quando resolve fazer um filme como trabalho de escola, meio que na onda de seu pai, um cineasta em crise afetiva. A relação entre cinema e vida é clara desde o título. Ao mesmo tempo, o filme (o cinema) é uma forma de a filha se aproximar do pai. De modo que, talvez mais do que um filme sobre o cinema, é um filme sobre a relação de uma filha com um pai. Nesse processo, Thiago mostra como o cinema (o ato da criação) pode ser um gesto que, mesmo ingênuo, acaba soando subversivo, talvez por sua própria ingenuidade: a produção do filme acaba gerando um mal estar na escola; uma troca de rolos gera uma crítica irônica ao próprio circuito dos festivais. A instituição "escola" e a instituição "cinema" sofrem um abalo mas nada que vá alterar sua estrutura de funcionamento, algo que realmente transforme sua estrutura conservadora. Para além disso, Thiago não toca em outra instituição, que permanece entronizada ao longo de todo o filme: a instituição "família". A excessiva romantização e idealização do seio familiar comprova uma das maiores características do filme, que é seu excessivo didatismo e romantismo. A inserção de outros personagens (a faxineira, o mendigo, a professora que fala sobre o racismo e os escravos) entra no filme quase como um corpo estranho, uma espécie de apêndice, sem organicidade, quase como uma pílula educativa, reforçando sua intenção didática. Didatismo que fica mais gritante pelas opções de encenação: luz, figurino, música, que possuem sempre uma função de esclarecer, tornar claro, reforçar aquilo que já se apresenta pelo roteiro, gesto dos personagens, etc.

Ainda que o gesto criador da menina protagonista crie uma espécie de abalo na normatividade do sistema, me parece que o excessivo romantismo e didatismo de UM FILME DE CINEMA não transformam o espectador, de modo que o filme permanece numa zona de conforto ao abordar determinados temas. É um filme singelo, bem costurado, que fornece um saudável entremeio em se tratando da filmografia desse diretor. Mas seu deslocamento em relação ao típico olhar para a Mostra Aurora me parece mais uma provocação do que de fato uma proposição de algo potente para o cinema brasileiro de hoje. Talvez em um festival de cinema com outras características esse filme possa ser melhor recebido. Pois, para que possa ser visto, um filme também precisa nascer no local e no momento adequados. E, à primeira vista, não me parece ser o caso.

Quando Thiago subiu ao palco e dedicou seu filme a Andrea Tonacci, permanecemos sem entender, ou ainda quase atônitos. Mais coerente seria que dedicasse a cineastas "órfãos", como o Christensen de O menino e o vento. Ou talvez nem isso, dada a solidão, a tristeza e a melancolia desse filme do Christensen. Talvez seja isso: falta um pouco de silêncio e de tristeza para além desse "palhaço que não consegue mais fazer rir". Alguma zona de penumbra nesse cenário de estúdio excessivamente colorido e iluminado.

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